Nós somos pássaros que
andam
O Povo Tupinambá solicita uma audiência com Vossa Santidade Papa Francisco

Olivença, 3 de novembro de 2023,

Saudações do Divino Espírito Santo,
Que a paz do Senhor Jesus Cristo esteja convosco.

Diante das variações do universo venho me apresentar à Vossa Santidade. Sou Glicéria Tupinambá, nascida no Território Tupinambá de Olivença, Sul da Bahia, onde há cerca de vinte duas comunidades indígenas. Esse território, nosso de direito, aguarda a assinatura de sua demarcação desde 2009. Ele é alvo de várias violências por parte do Estado e de poderosos.

A história nos revela o quanto de violações e despossessões que nós povos indígenas sofremos ao longo dos séculos. Acompanhando a linha do tempo da história, tenho certeza que encontrei um desafio interessante: mostrar como as bulas papais que foram estabelecidas pelos Papas anteriores ao Vossa Santidade deixaram um legado nefasto, gerando efeitos colaterais que se refletem até os dias de hoje, justificando o roubo de nossas terras, a perseguição à nossa cultura, à nossa religião e ao nosso modo de vida.

Sabemos que Vossa Santidade revogou tais bulas que legitimavam a Doutrina da Descoberta, mas seus efeitos se fazem sentir ainda no presente. Por conta delas, Reis estabeleceram leis de “guerras justas” sobre nossa nação, resultando no não reconhecimento das nossas terras até os dias de hoje. Somos considerados estrangeiros dentro do nosso território.

Em meio a tanta adversidade, os Encantados, nossos guardiões que surgiram com a criação da humanidade, me deram a seguinte tarefa: recuperar as técnicas ancestrais da feitura dos Mantos Sagrados Tupinambá – e assim o fiz. O manto Tupinambá também mandou que eu me encontrasse com todos os objetos, adereços, adornos e instrumentos que, junto com os mantos, compõem os nossos rituais ancestrais.

Vejo os fragmentos da história que demonstram que os padres jesuítas tiveram empenho em combater nossa religião Tupinambá. Para provar a nossa conversão e a de nossos líderes religiosos, confiscaram nossos mantos, retirando-os das aldeias e enviando-os para seus superiores em Roma. Segundo um dos escritos que consultei, os jesuítas levaram de uma só vez dez mantos Tupinambá. Também sei que encontram-se no Vaticano um caderno de sonhos de Catarina Paraguassu e uma pedra importante para nossa comunicação com as divindades. Tudo ficou em posse dos padres.

Venho de uma linhagem de Pajés Tupinambá. Os fundadores da nossa religião foram Tamandaré e Tupandecy. Este último foi queimado na fogueira da Santa Inquisição. A história nos deve e muito. Pela importância dessa dívida, solicito uma audiência com Vossa Santidade para atender ao pedido dos nossos Encantados. Eles sabem mais do que eu. Para além de consertar a escrita da história, os Encantados pedem para nos confrontar com o mal que veio do outro lado do oceano e o atravessou, um mal que assola a humanidade e que não conseguimos frear até os dias de hoje.

Essa luta não só depende de nós, povos indígenas. Precisamos, junto à Vossa Santidade, ver o tamanho deste nosso inimigo invisível, para fazer ele parar de querer engolir a terra.

Tenho uma esperança e quero compartilhá-la com Vossa Santidade. Gostaria de saber se em vossos sonhos o Espírito Santo veio vos falar sobre o futuro deste mundo. Gostaria de saber se Vossa Santidade sente também a urgência deste nosso encontro.

Sei que as mudanças são lentas e poucas, mas o efeito rebote delas é maior no futuro. Estou lutando por futuros possíveis. Espero que Vossa Santidade também.

Que a Graça do Senhor Jesus Cristo esteja sempre com Vossa Santidade!

Que o nosso glorioso São Sebastião esteja sempre em nossa defesa!

Glicéria Tupinambá
em nome da Associação dos Índios Tupinambá da Serra do Padeiro-BA